‘Eu’ contra ‘Nós’

Vejo muito se falar na troca do “eu” pelo “nós”. Seria sempre uma coisa boa?

Quando uma coisa vira meme, eu normalmente assumo que é uma visão superficial do mundo. Recentemente, tenho visto uma tendência crescente pela coletivização do talento, justamente numa época em que se deseja reter as melhores cabeças.

A coisa não é simples e seguir memes nunca vai ajudar. Exemplo aqui.

Coletivismo x Individualismo

O coletivismo é muito mais um conceito que uma ideologia. Prefiro comentar que é um paradigma. Um paradigma pelo qual se avalia as ações humanas pela dependência entre elas. Avalia-se comunidades, grupos e conjuntos de afins. Avalia-se suas necessidades, desejos e problemas. Podemos citar Karl Marx e Emma Goldman como autores para quem desejar se aprofundar na parte mais filosófica do tema.

Já o individualismo, na minha definição como um paradigma, prega a obervação a menor unidade de coletivo, ou seja, na avaliação individual das necessidades, desejos e problemas do indivíduo e, por fim, como tal somatório interfere na sociedade. Igualmente, podemos citar Ayn Rand e a Friedrich Hayek.

O individualismo, portanto, valoriza o indivíduo. O coletivismo, o grupo. Portanto:

  • Coletivamente: a equipe.
  • Individualmente: o talento.

O problema é justamente por haver estas duas forças opostas igualmente valorizadas dentro das empresas: a valorização dos profissionais e a exaltação do trabalho em equipe. Qual delas deve-se dar mais foco, já que é impossível focar em coisas opostas da mesma forma que é  impossível subir e descer ao mesmo tempo?

A resposta certa é: ambas. Como? Mudando vários paradigmas para que essas coisas não sejam opostas. Portanto, tudo começa por aceitar como válido o talento individual e suas conquistas e não crucificar tal postura, como tem sido feito…

A Perda do Talento Individual

Como normalmente os memes massificam opiniões superficiais, e todos tem pregado pelo coletivismo no mercado de trabalho, convido a um raciocínio diferente e pensar um pouco mais a fundo. Pensemos sobre o talento individual.

Gosto de usar o exemplo dos esportes. Sempre há uma equipe por traz de cada atleta, mas se não é este a deter o talento individual, de nada adiantaria a melhor equipe do mundo. Isso vale para Formula 1. Garanto haver mecânicos e engenheiros geniais em todas as equipes. Porém, a que tem os melhores pilotos ganha. Por quê? Talento individual.

É do talento individual – e não do trabalho em equipe – que surge a contribuição genial. A ultrapassagem impossível. O grande drible. A grande obra de arte. A venda espetacular. A solução do grande bug. A ideia do novo produto. A descoberta de um grande talento.

Quando se desestimula o indivíduo a dar sua contribuição especial, quando se gera restrição a alguém mostrar sua individualidade, temos o pior lado do coletivismo, que é o nivelamento por baixo. Se o cara genial for recompensado da mesma forma que alguém mediano, ou pior, obrigado a adotar um discurso de jogador de futebol (o caso do nós na primeira pessoa do singular), estaremos matando o talento ou criando egocêntricos de gaveta.

Politicas de RH estratégico não respondem este problema.

Ao abolir a valorização individual ou ao selecionar apenas aqueles que se diluem no coletivo, certamente uma empresa que se mantenha inovadora ou estará com um quadro repleto de falsos modestos ou em breve cai na mesmice.

Para resolver o problema de valorização, algumas empresas despejam para os gestores ou ao RH a necessidade de criação de politicas de valorização de pessoas, normalmente com a exigência de não envolver ganho financeiro.

Ai encontramos:

  1. uma cultura contra a valorização do indivíduo​, afinal, o nós é maior que o eu; e
  2. uma politica de RH para a valorização dos indivíduos.

Invariavelmente, o discurso e a cultura vencem qualquer política, pois é mais “politicamente correto” não discursar sobre a individualidade. No fundo, como mencionado, isso gera o caso clássico do ego de gaveta. E não há limite para o tamanho desta gaveta. Para o boicote velado de quem se destaca…

Reality check: quer saber quando um gestor coletivista está presente e que jamais vai seguir as politicas de valorização de pessoas? Ele usa a frase “ninguém é insubstituível” não como um consolo sobre uma perda, mas como uma ameaça a quem almeja uma promoção.

O Coletivismo e as Promoções

Uma das coisas mais ridículas que andei lendo foi a empresa que só contratava pessoas que assumiam erros com um “eu” , mas que só falavam dos acertos como equipe.

Eu não sei que tipo de pessoas eles esperam ter dentro de um lugar assim: gente talentosa dotada de um discurso hipócrita e modestamente falso ou gente medíocre, que provavelmente não teve papel relevante nas vitórias da equipe. Para completar, aqui no Brasil nós tivemos a maravilhosa invenção do “nós de primeira pessoa” ou “a gente“…

Eu garanto: se fosse uma conquista individual ou se o cara fosse peça chave, ele se sentiria orgulhoso disso. Grandes pintores sempre assinam suas obras e não há problema nisso.

“Mas modéstia não é um problema per se“. É sim. Comento isso no Autodesenvolvimento. Leiam lá.

Por que critico isso? Porque é mera conversa fiada. Nunca vi, em uma empresa que prega o coletivismo do trabalho em equip, ter existido algo como “promoção em equipe”. Prega-se o coletivo sem valorizar coletivamente. E argumentos para tal atitude não faltam, sendo que normalmente recorrem ao individualismo para explicar isso: as participações não são iguais. Uma completa falta de bom senso, presente em toda empresa ruim.

Antes que alguém dê a pedrada: empresas ruins podem ser muito bem sucedidas. Impérios se construíram sobre escravos…

Mas quando o “eu” se torna um problema?

Bom, isso anda tão martelado que me limito a citar exemplos:

  • Quando usado em detrimento dos demais;
  • Achar que os demais são dispensáveis​ e voláteis (somente eu tenho importância);
  • Confundir valor x importância x preço (pagamento);
  • Ser tecnocrata;
  • Achar que todo colega é um concorrente (comum em vendas);
  • Gestores que consideram que todos são substituíveis, a qualquer momento, de qualquer jeito;
  • Etc…

A Individualidade no Trabalho em Equipe

O trabalho em equipe é, de certa forma, coletivo e tem muita base em algumas disciplinas coletivistas. É impossível montar uma equipe em que ninguém cede nada, ninguém aceita ajudar o colega. Normalmente, o egocentrismo é combatido por uma postura: uma postura de humildade.

É humilde quem fica orgulhoso por ter feito um trabalho excepcional e, ao mesmo tempo em que não há a presunção de ser o melhor, é grato pela equipe que o ajudou a ser único. É humilde quem entende que todas as atividades são importantes, mesmo quando tem tal função tem valor e remuneração diferente. Acima de tudo, quem sabe usar sua individualidade para o bem da equipe e se coloca, junto do seu talento e do seu melhor, a disposição dos outros (o modesto normalmente quer fugir da responsabilidade de ser a engrenagem principal).

Aliás, isso é uma das maiores ferramentas do grande talento e de todo grande gestor: eles sabem como colocar em benefício próprio e do time suas melhores habilidades e sabem como cobrir suas lacunas usando as melhores habilidades dos seus colegas e da sua equipe.

Gosto de pensar que o céu é sempre grande o suficiente para cada estrela brilhar sozinha e ser apreciada. Porém, quando alguém se comporta como o sol, sinto muito. Ninguém consegue olhar o sol por tempo suficiente para apreciá-lo.

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Sobre rftafas 183 Artigos
Ricardo F. Tafas Jr é Engenheiro Eletricista pela UFRGS com ênfase em Sistemas Digitais e mestre em Engenharia Elétrica pela PUC com ênfase em Gestão de Sistemas de Telecomunicações. É também escritor e autor do livro Autodesenvolvimento para Desenvolvedores. Possui +10 anos de experiência na gestão de P&D e de times de engenharia e +13 anos no desenvolvimento de sistemas embarcados. Seus maiores interesses são aplicação de RH Estratégico, Gestão de Inovação e Tecnologia Embarcada como diferenciais competitivos e também em Sistemas Digitais de alto desempenho em FPGA. Atualmente, é editor e escreve para o "Repositório” (http://161.35.234.217), é membro do editorial do Embarcados (https://embarcados.com.br) e é Especialista em Gestão de P&D e Inovação pela Repo Dinâmica - Aceleradora de Produtos.
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