Você é romântico. Um Romântico Corporativo.

Ai você vai na feira de empreendedorismo. Há uma startup que nasceu na garagem. Ou então ouve a história do fulano, que conseguiu montar uma empresa gigante do nada.

E você se pergunta: e eu?

Bem vindos leitores ao Romantismo da era da informação.

O Romantismo

O romantismo foi um movimento literário que teve seu auge no século XIX no Brasil. Muita gente entendeu literatura errado: não é porque o romantismo teve seu pico naquela era que ele deixou de existir como estilo literário. Na Europa, aconteceu no século XVIII.

Pois, seja lá qual o tema, as historias envolvem sempre uma figura heroica, que contra tudo e contra todos acaba vencendo o inimigo, ou algum tipo de personificação do mal. Um cavalheiro medieval, uma mulher sofrida, um príncipe cerceado do seu trono.

Muita gente achou que o romantismo, como estilo literário, acabou. Enganam-se.

Existe o Romantismo moderno. Diria eu: Romantismo Corporativo.

A Prova.

Tanto o romantismo ainda existe que tivemos biografias completamente fantasiosas do Steve Jobs (aqui e aqui) bem como tem muita gente que acredita no mito da garagem (aqui, aqui, etc). Aquilo, para mim, não é realismo fantástico: é um romance no sentido de livro.

Não tem veracidade jornalística. Não é um ponto de vista.

Não sei, mas para mim qualquer versão embelezada e criadora de heróis soa como romantismo. Puro e aplicado.

Temos sempre uma figura heroica (um cientista, um empreendedor, um rebelde) lutando contra algum tipo de manifestação do mal (os acionistas, o mercado, alguma entidade governamental secreta) para realizar o sonho de alguém (o seu, de uma donzela, de fazer o mundo melhor).

Ainda não acredita que você é romântico?

O que você admira…

Leia direito as biografias dos sujeitos e busque o que há de fatos e reportagens da época. Dá trabalho e raramente o resultado vai ser divertido. Não vai ser uma história boa de ser contada. Veja também se há algo em que estas pessoas fracassaram. Curiosamente, não há casos de fracasso, exceto por uma ou outra excentricidade de suas personalidades, as grandes besteiras que estas pessoas disseram são deixadas de lado para embelezamento da história.

Não há nenhum problema nisso. O problema é outro.

Como mencionei, a maioria das historias que são contadas por aí fantasiam a realidade e retiram uma porção muito importante da realidade: os casos de fracasso e que nenhum sucesso é absoluto. Muita coisa muito importante fica de fora.

O suor. A dor. O que é sacrificado. A família, que se perde, talvez, pelas incontáveis horas de dedicação. A frustração. O cansaço. O desânimo. Nada disso aparece, ou quando algum fator humano dá as caras, só serve para, em seguida, o protagonista soltar alguma frase de efeito, inspiradora, tipo o discurso de Henry-V, de Shakespeare. Gosto muito daquela música do AC/DC: It’s a long way to the top if you wanna rock and roll:

Gettin’ robbed
Gettin’ stoned
Gettin’ beat up
Broken boned
Gettin’ had
Gettin’ took
I tell you folks
It’s harder than it looks

E aí temos o problema: as pessoas admiram e se espelham apenas em um lado da história: o bom. Como eu costumo dizer: para ganhar na Megasena, é só escolher os números corretos. E nem são tantos, só 6.

E você com isso?

Essa fantasia toda coloca muita gente em depressão e descontente com sua própria realidade. Como?

Isso afeta você em sua motivação. Ficar acreditando nos contos da carochinha faz com que você diminua suas pequenas vitórias e não armazene energia psicológica suficiente para enfrentar os altos e baixos da vida.

A maioria das pessoas bem sucedidas não vai admitir que a sorte teve um papel importante. Que fizeram sacrifícios que, não tendo sido vitoriosos, talvez não valessem a pena. Vão romantizar: a versão romântica é sempre muito mais legal.

Eu abordo este assunto com maior detalhe neste artigo: “Só depende de você. Mas só você estiver em uma ilha deserta…

O Dom Quixote Corporativo

É isso que você vira quando acha que seu trabalho tem que ser mais “legal”. Que os outros são mais bem sucedidos que você. E que você, sozinho, sem observar a existência de oportunidade, deve mudar sua vida. Para tal situação, eu gosto daquela passagem do Dilbert:

“Your job is not supposed to be fun. If it were, company would be charging you to be here.”

Óbvio, isso não é assim, mas é um belo contraponto. É possível ser feliz com o seu emprego é só entender que a chave está em como encarar as coisas e, principalmente os resultados (ou falta deles). Talvez essa seja uma das poucas coisas que estão sob nosso controle: aquilo que a gente pensa… Ao pensar com boa intenção ou até se contentar com o que a vida oferece e portar-se de modo a tentar tirar o máximo dela, seja qual for o resultado, pode ser um paradigma interessante.

Do contrário, você acaba tendo que buscar emoção. Ou inventar emoção… Para quem leu o livro, sabe muito bem que Dom Quixote era um fidalgo entediado. Cervantes anuncia isso no início do livro.

Dom Quixote então embarcou nessa jornada louca por estar descontente com sua vida e desanimado, pois ele não vivia nada dos Romances que lia. Curiosamente, em algum momento de sua “loucura”, ele dá claros sinais de sabia muito bem o que estava fazendo.

Ao adotar a vida que você lê, ao fazer isso como Don Quixote fez, você abre mão daquilo que lhe é mais importante: viver e aprender a aproveitar a sua própria existência. É essencial que qualquer pessoa entenda: “it’s harder than it looks.”

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Esta obra está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

Sobre rftafas 183 Artigos
Ricardo F. Tafas Jr é Engenheiro Eletricista pela UFRGS com ênfase em Sistemas Digitais e mestre em Engenharia Elétrica pela PUC com ênfase em Gestão de Sistemas de Telecomunicações. É também escritor e autor do livro Autodesenvolvimento para Desenvolvedores. Possui +10 anos de experiência na gestão de P&D e de times de engenharia e +13 anos no desenvolvimento de sistemas embarcados. Seus maiores interesses são aplicação de RH Estratégico, Gestão de Inovação e Tecnologia Embarcada como diferenciais competitivos e também em Sistemas Digitais de alto desempenho em FPGA. Atualmente, é editor e escreve para o "Repositório” (http://161.35.234.217), é membro do editorial do Embarcados (https://embarcados.com.br) e é Especialista em Gestão de P&D e Inovação pela Repo Dinâmica - Aceleradora de Produtos.
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