O que importa é ter razão.

Mais um da série de contos corporativos...

Todo mundo sabia que Camila, funcionária do TI, era uma neurótica e tinha mania de perseguição, mas todo mundo concordou que ela havia passado dos limites quando quase surtou pela efetivação de um estagiário em outro setor. Para piorar, Camila não conseguia guardar isso apenas para ela:

-Então efetivam ele no departamento de finanças. Aí, luís, que já fez um treinamento em 1986 para RH, muda de departamento. A recém contratada do RH fez técnico em informática. Pronto, vão me demitir do TI.

As vezes ela exagerava sem dó do ouvinte: Camila tinha teorias conspiratórias. Ela achava que o “sistema” era autogerido e autossuficiente. Segundo a teoria dela, nas palavras da própria:

-Aí a empresa A tem participação na Empresa B. E a empresa B tem participação na empresa C. E a empresa C tem participação na empresa A. Óbvio que não é só assim, é mais complexo.

Ninguém dava importância para Camila. Mesmo assim, ela não desistia.

Camila falava disso com qualquer um, sem a menor vergonha ou qualquer restrição para a opinião do ouvinte. Sempre alugava aos ouvidos de alguém sem mesmo perguntar se podia ou pelo menos pedir licença. E dessa vez era Jorginho, o zelador. E ele, calmo, dizia:

-Complexo? Como?
-Porque temos a empresa D, E e F na mesma condição. Mas fica mais complicado ainda: a Empresa D pode muito bem ter parte nas empresas A, B ou C. Da mesma forma, as empresas G, H e I. Assim, no final, todas as empresas são donas de dotas as empresas e ninguém, no fundo, é dono de nada.
-Bom, eu sou dono desse “sanduba”. Com licença que vou fazer meu lanche.

E era sempre assim. Camila enchia os ouvidos de um, de outro, com suas paranoias e bobagens. Sempre com alucinações e mania de perseguição, a cada dia que passava Camila perdia cada vez mais credibilidade e simpatia dos colegas de trabalho.

Certo dia, às vésperas do aniversário de 29 anos dela, Camila podia jurar que ainda era uma pessoa muito querida. Era interessante como ela enxergava armações onde não havia nenhuma, contudo, não conseguia enxergar o próprio nariz, mesmo que este lhe fosse apresentado. Mas nessa semana, um a um, Camila foi interpelando, com tom de brincadeira:

-Semana que vem é meu aniversário. E aí? O que você vai me dar de presente?

E a semana passou, a outra começou e o dia chegou. Camila acordou alegre, foi trabalhar alegre. Mas naquela manhã ninguém lembrou de dar os parabéns à Camila. Perto das dez da manhã ela começou a desconfiar: “não, não devem ter esquecido; eles não podem ter esquecido”. Começou a jogar uns verdes com um ou com outro, ao longo do dia que, para ela, deveria ser uma data festiva a todos:

-Pois é, essa semana foi corrida, não é? Hoje é um dia bom. Não acha?
-É, puxado, quero mais é chegar em casa.

Ninguém lembrava do Aniversário de Camila. Ela começou a desconfiar que, dada a apatia das pessoas para a data que, para ela, era de sumária importância, as pessoas haviam programado algo. E rapidamente imaginou que estivessem preparando uma festa surpresa. E para a felicidade dela, quando abriu, logo após o almoço o e-mail, convocando todos para uma reunião na sala grande de reunião da empresa.

Era apenas uma reunião de rotina. O dia seguiu. A cada pessoa que passava cochichando algo, Camila ficava cada vez mais com a certeza de que estavam preparando algo para ela. Contudo, à medida que Camila ia perguntando para um ou outro, os cochichos aumentavam. E cada vez mais aumentavam.

Perto do final do expediente, Camila já estava no fim de sua curiosidade. O que, de tão especial, preparam para ela? Estavam todos cochichando, apontando para ela e rindo. Camila sentia-se especial. Achava até que era importante para os colegas de trabalho. Então Marília, a recém contratada do RH, chegou para conversar com Camila.

-Camila, tem um minuto?

Camila era só alegria. Era o momento.

-O pessoal todo estava comentando que…
-Sim, é uma festa surpresa para mim! Obrigado! Não precisava!
-Não é isso.
-Não?
-Não. Você está com um sapato de cada tipo. E, por mais que você seja uma mala, não acho certo ficarem rindo da sua cara.
-Ah…
-Cuide para não cometer a mesma gafe amanhã. A propósito, parabéns pelo seu aniversário. Preciso ir, estou com pressa.
-Mas e a festa?
-Que festa? Para você? Ah é… Bom, o melhor presente que eu posso te dar é ajudar você: sorte sua que eu gosto muito de RH, senão teria tomado seu lugar no TI, após a efetivação do estagiário de finanças.

Camila não quis mais nem saber de festa. Dane-se que ela não era importante a ninguém: uma de suas teorias estava correta. Ou não, afinal, poderiam ser meras palavras de consolo de Marília.

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Ricardo F. Tafas Jr é Engenheiro Eletricista pela UFRGS com ênfase em Sistemas Digitais e mestre em Engenharia Elétrica pela PUC com ênfase em Gestão de Sistemas de Telecomunicações. É também escritor e autor do livro Autodesenvolvimento para Desenvolvedores. Possui +10 anos de experiência na gestão de P&D e de times de engenharia e +13 anos no desenvolvimento de sistemas embarcados. Seus maiores interesses são aplicação de RH Estratégico, Gestão de Inovação e Tecnologia Embarcada como diferenciais competitivos e também em Sistemas Digitais de alto desempenho em FPGA. Atualmente, é editor e escreve para o "Repositório” (http://161.35.234.217), é membro do editorial do Embarcados (https://embarcados.com.br) e é Especialista em Gestão de P&D e Inovação pela Repo Dinâmica - Aceleradora de Produtos.

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